Thorfinn — O anti-naruto
Existe uma crítica a Naruto que tomou popularidade de uns anos pra cá e sempre considerei extremamente válida: a série simplesmente joga seus valores no lixo a partir de sua segunda metade.
Bem, talvez não exatamente todos os valores, mas com certeza aqueles que representavam a força motriz da narrativa. Naruto (o personagem) é apresentado como um paria social. Burro, órfão e com um demônio dentro do corpo, ele é socialmente isolado numa sociedade dominada por uma aristocracia ninja elitista e tradicionalista. Nesse contexto, o personagem estabelece a absurda meta de virar hokage a qual tem ares de desafio à estrutura vigente e à marginalização sofrida na infância.
E, clichê à parte, é uma premissa que funciona bem. O mundo da série é bem desgraçado, especialmente no começo de narutinho, criando a noção de que o velho status quo tem mais é que ser substituído e aquelas velhas injustiças consertadas de maneira a abrir espaço para nosso herói fazer as vezes de revolucionário.
O problema é que o garoto órfão deixa de ser um herói marginal ao descobrirmos ser ele filho do quarto hokage com uma descendente do primeiro bem como a reencarnação de um deus ancestral. Isso sem mencionar ter ele sido treinado pela nata de Konoha em todas as fases da série.
A história acaba deixando de soar como a superação do estigma do protagonista e da estrutura que o fazia sofrer e sim como uma série de maravilhosas coincidências que o levam de carona pro trono de Konoha. Curiosamente, o ninja loiro nem parece ter de resolver as injustiças destacadas no começo da série, já que o autor simplesmente as esquece ou perde a coragem pra abordá-las (Orochimaru mandou até uma lembrancinha pro casamento do Naruto, mesmo sendo um Josef Mengele 2D).
Em resumo, a partir do momento que Naruto se descobre inserido na nata do privilégio do mundo dos ninjas mágicos aquela vontade de mudar o mundo simplesmente desaparece. Os temas da série também perdem a profundidade inicial. Se no início há um arco tratando, por exemplo, de como um mafioso local queria impedir a construção de uma ponte pra não prejudicar seu negócio de transporte marítimo e como isso afetava a população local o mangá termina com páginas de mecas gigantes de chakra e ninjutsus colossais com pouco ou nenhum significado além de prolongar o roteiro até onde fosse possível.
E nesse contexto é interessante observar um protagonista que siga na contramão desse comportamento. Thorfinn Karlsefni é o herói de Vinland Saga, um anime que traz (nas palavras do autor) uma proposta incomum: Enquanto os heróis tipicamente vencem seus obstáculos por serem superiores na prática de violência, a proposta da obra é a criação de um herói capaz de superar esses obstáculos através da não violência.
Mas não é tão simples assim. Vinland Saga se passa na virada do séc. X, ou seja, no pico da expansão viking. Violência não somente é a ordem social, como é moeda de troca na forma de mercenários e religião na ideia de que Valhalla se reserva àqueles que morrem em batalha enquanto o resto iria pra Helhein, o inferno gelado viking.
Mais importante ainda, essa mesma cultura faz com que Thorfinn esteja desde a infância fixado na ideia de vingança contra o homem que matou seu pai. Assim como todos os outros ao seu redor ele também é sugado pra esse ciclo vicioso, cometendo todo tipo de atrocidade imaginável e promovendo a mesma estrutura de violência que o fez se tornar órfão.
Na adolescência, já um guerreiro experiente, Thorfinn descobre ser descendente do chefe de um clã de mercenários de alto calibre, os Jonsvikings tornando-o, efetivamente, o maior representante do status quo daquela ordem social pautada na lei do mais forte.
Mas, após a morte do homem de quem queria se vingar, Thorfinn percebe que, sem aquela fixação, sua vida perde o sentido. Ele entra em depressão e é vendido como escravo e é nesse ponto que se torna determinado a acertar seus erros, criando um país sem escravidão ou guerras na forma de Vinland.
O desafio é colossal e absurdo. O leitor, até aquele ponto, se deparou com uma obra sempre focada em conflitos e guerra e um protagonista inserido da cabeça aos pés naquele meio. Mas, numa decisão corajosa, essa suposta ordem das coisas é negada e ativamente questionada.
Não faltam oportunidades pra Thorfinn se render à sua hereditariedade e comandar os Jonsvikings, mas caso o fizesse a história não teria significado. O roteiro constantemente lembra o personagem de seus atos hediondos e mesmo seu idealismo encontra barreiras que só o dialogo não é capaz de superar, mas é essa corda bamba moral que torna o conflito proposto algo tão tangível.
Além disso, Vinland Saga se passa em nosso mundo e é baseada na tentativa de colonização da América do Norte por vikings. Qualquer um familiar com a história do mundo sabe que esse plano falhou, mas, mesmo assim, a mensagem da obra continua importante. Independentemente do sucesso da colônia ainda há algo a se extrair da negação de elementos que nos aparentam tão naturais como a guerra e a violência.
É dessa, e de diversas outras formas, que Vinland Saga inspira. Se a escravidão nos parece um ato desumano hoje é porque houve um equivalente idealismo no passado que, convertido em ações, permitiu romper-se aquela norma social tão difundida e institucionalizada.
Existem diversas formas de status-quo que são aproveitadas e reforçadas sem que percebamos. O machismo, o racismo, a desigualdade social, a intolerância religiosa ensinada com naturalidade em certos setores da sociedade. É o dever de cada um ajudar a romper esses aspectos de nosso país, mesmo que deles pudessem se aproveitar. E é na forma de obras como Vinland Saga que essa mensagem pode também ser difundida.
Subliminarmente Naruto nos ensina que apenas uma seleta casta de pessoas pode ter aspirações maiores. Aqueles de fora, mesmo que se esforcem, são meras notas de rodapé na história. Vinland Saga propõe a demolição dessas castas, não de maneira inocente e utópica, mas trabalhando com os empecilhos naturais que se encontra ao propor grandes mudanças e ideias revolucionárias. Torço e desejo por mais Thorfinns e menos Narutos em nosso mundo.